Por Sérgio Ramalho
Era início da madrugada de sexta-feira, véspera do carnaval de 2023, quando o chefe do setor de investigação da Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas (DRFC), Juan Felipe Alves da Silva, chegou ao depósito da unidade especializada, na Cidade da Polícia, no Jacaré, subúrbio do Rio de Janeiro. Logo depois, um caminhão estacionou à frente do galpão e com o auxílio de um guindaste seus ocupantes embarcaram no veículo uma máquina de cigarros e três embaladoras, avaliadas em um milhão de reais.
Havia sete meses que os equipamentos, pesando cerca de cinco toneladas, estavam sob a tutela da DRFC. As máquinas tinham sido apreendidas numa fábrica clandestina em julho de 2022, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. No local, 23 paraguaios e um brasileiro trabalhavam em condições análogas à escravidão. A produção ilegal de cigarros, somada à exploração de trabalho escravo, faz parte do leque de atividades da holding criminosa chefiada pelo bicheiro Adilson Oliveira Coutinho Filho, o Adilsinho. Atualmente, foragido da Justiça.
De volta à madrugada de 17 de fevereiro, o caminhão carregado com as máquinas retiradas do galpão da DRFC saiu lentamente do pátio em direção ao portão da Cidade da Polícia, tendo à frente a picape Ford Ranger, placa RKK4G37. O veículo oficial da Polícia Civil estava sob a guarda do chefe do setor de investigação da delegacia, assim como as chaves do depósito. Juan da Silva integra um bando formado por policiais civis e militares, envolvido em ações de logística para a máfia do jogo e o Comando Vermelho (CV).

Máquina elaboradora de cigarros que sumiu da Cidade da Polícia pesava 5 toneladas
Nas redes, policiais culpavam STF por avanço da criminalidade, mas negociavam por Whatsapp a entrega de drogas ao CV
A atuação dos policiais na logística para as organizações criminosas consta de um relatório elaborado pelo Setor de Investigação Complexa da Corregedoria-Geral da Polícia Civil, compartilhado com o Ministério Público do Rio de Janeiro e a Polícia Federal. O ICL Notícias teve acesso com exclusividade ao documento, que detalha os passos do grupo antes do furto da máquina de cigarros, suas ligações com o bicheiro Adilsinho e com o traficante Phillip da Silva Gregório, o Professor, um dos chefes do CV no Complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro, no subúrbio carioca.
A desfaçatez dos policiais é evidenciada em postagens feitas em redes sociais, onde acusavam o Supremo Tribunal Federal de favorecer traficantes ao exigir o cumprimento de regras durante operações policiais em comunidades do Rio. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635, conhecida como a “ADPF das Favelas”, foi impetrada no STF pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), que alegava violação massiva de direitos fundamentais nessas operações.
Enquanto atacavam o Supremo em postagens no X, Instagram e Facebook, os policiais envolvidos na logística criminosa usavam o Whatsapp para trocar mensagens com integrantes do CV, especialmente, com Phillip Gregório, o Professor.
Nas conversas, negociavam pagamentos de propina para não atrapalhar o tráfico, não entrar nas comunidades em busca de caminhões de cargas roubados e até mesmo para tratar da entrega de carregamentos de drogas. O que levou a Polícia Federal a prender Juan da Silva e outros três policiais da DRFC, em 19 de outubro de 2023. Os quatro foram acusados de negociar a entrega de 16 toneladas de maconha para o CV. Embora afirmasse nas redes sociais que o STF impedia a entrada em favelas, os policiais escoltaram o carregamento até a comunidade de Manguinhos, usando para isso três viaturas oficiais da Polícia Civil.
Máquina de fabricar cigarros furtada teve escolta de viatura da DRFC até a fronteira com a Bolívia
Oito meses antes de ser preso pela PF, Juan da Silva teve sua participação no furto da máquina de cigarros detalhado em relatório de 52 páginas. O documento traça a rota usada pelo grupo desde a saída do caminhão da Cidade da Polícia até Cuiabá, no Mato Grosso, estado brasileiro que faz fronteira com a Bolívia. A trajetória percorrida pela picape da Polícia Civil foi captada por câmeras (OCRs) e radares da Prefeitura do Rio de Janeiro, da Polícia Rodoviária Federal e do sistema Córtex, plataforma de monitoramento do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
O detalhamento revela que antes de chegar à Cidade da Polícia, o veículo usado pelo chefe de investigação da DRFC completou o tanque com 27,7 litros de gasolina, totalizando R$ 521,99, no posto de combustíveis Cinco Estrelas, localizado na Rodovia Presidente Dutra, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, às 23h21. Pouco depois, o veículo foi flagrado por uma OCR da Prefeitura do Rio:
“(…) A referida viatura ostensiva da DRFC teve passagem registrada pela Av. Democráticos, no dia 17/02/2023, às 00:19:44, notadamente correspondente ao endereço à DRFC, localizada na Cidade da Polícia Civil (…) A viatura foi registrada no Estado do Mato Grosso no dia 25/02/2023, o que causa absoluta estranheza e dá azo à hipótese da referida viatura ter feito escolta ilegal da máquina elaborada de cigarros desviada”.

Trecho do relatório da Corregedoria da Polícia Civil do Rio

Trecho do relatório da Corregedoria da Polícia Civil do Rio
O documento levanta a possibilidade da placa do veículo oficial ter sido adulterada, com o auxílio de fita isolante para mudar caracteres e, assim, tentar evitar o registro de sua passagem por radares e câmeras:
“A hipótese da colocação de fita adesiva na placa da viatura RKK-4G37 da DRFC e ida ao Mato Grosso, pois é incomum uma viatura permanecer dias trafegando sem registro de OCR. Fortalecendo a hipótese citada acima”. O subterfúgio não impediu que uma semana depois o veículo fosse flagrado por um radar na Rodovia Emanuel Pinheiro (BR-251), às 8h08, do sábado 25 fevereiro, próximo ao clube do Ministério Público, em Cuiabá (MT).

No centro, com os rostos circulados em vermelho, o ex-chefe de investigação da DRFC Juan da Silva. Atrás, com gorro na cabeça, o cabo PM Laércio Filho.
Cabo PM atuou como infiltrado de operações da DRFC e fez depósitos na conta do ex-chefe do setor de investigação
As investigações levantaram dados sobre a movimentação bancária feita por Juan da Silva entre 10 de março de 2022 e 31 de março de 2023. Nesse período, o então chefe do setor de investigação da DRFC movimentou R$ 4.795.966,00. A quantia é classificada como incompatível com os rendimentos do policial civil.
Anexado à investigação, o Relatório de Inteligência Financeira do Banco Central serviu ainda para jogar luz sobre outro integrante do bando, o cabo da Polícia Militar Laércio Gonçalves de Souza Filho, o Laercinho, então lotado na UPP do Morro do Alemão, área sob domínio do CV. No período de 48 dias entre setembro e outubro de 2023, o PM transferiu para a conta de Juan da Silva valores que totalizaram R$ 350.332,30.
Para tentar driblar o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), o cabo PM costumava fazer depósitos fracionados na conta-corrente de Juan da Silva. É o que revela a análise da movimentação financeira dos dois policiais. Dentre as cifras listadas no relatório, desperta a atenção os seguintes valores:
“1- R$ 137.535,00 30 (cento e trinta e sete mil e quinhentos e trinta e cinco reais e trinta centavos) 2- R$ 168.887,00 (cento e sessenta e oito mil e oitocentos e oitenta e sete reais) transferidos para a mesma conta do policial civil Juan da Silva, no período entre primeiro de setembro até 18 de outubro de 2023, véspera do dia em que o ex-chefe de investigações da DRFC foi preso junto a outros três policiais da delegacia, acusados de terem escoltado 16 toneladas de maconha para o CV”.
O documento lista também a transferência de mais R$43.910,00 feita pelo cabo PM para o policial civil e acrescenta a ressalva feita pelo COAF: “Às ocorrências achadas nas contas do nacional Juan da Silva: apresentam atipicidade em relação à atividade econômica do cliente ou incompatibilidade com a sua capacidade financeira, bem como a fragmentação de depósitos ou outro instrumento de transferência de recurso em espécie, inclusive boleto de pagamento, com indícios de tentativa de burla para evitar a identificação do depositante”.
A ligação entre os dois policiais não se limitou às vultosas cifras movimentadas pela dupla. O cabo Laércio Souza Filho, mesmo não sendo cedido à Polícia Civil, costumava circular em viaturas oficiais da DRFC e também participava como infiltrado de operações da delegacia especializada no enfrentamento às quadrilhas de roubos de cargas. A presença do PM é comprovada em fotos, algumas delas publicadas em redes sociais, como a imagem usada para ilustrar o relatório.
Apesar das robustas evidências levantadas no relatório do Setor de Investigação Complexa da Corregedoria-Geral da Polícia Civil, a atuação criminosa do grupo formado por policiais civis e militares só começou a ser desbaratada após o Ministério Público do Rio de Janeiro ter compartilhado as informações com a Superintendência da Polícia Federal.
As investigações seguem sob sigilo por envolver oficiais da PM, que ocuparam postos de comando em Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), em áreas dominadas pelo CV. Já a máquina de cigarros furtada da Cidade da Polícia e escoltada até Cuiabá (MT) segue desaparecida.