Por que estudar História incomoda tanto?

Por Leila Cangussu*

Você vive em um país que evita lembrar. O presente é cheio de demandas imediatas, e o passado costuma ser tratado como algo irrelevante. Mas isso é uma ilusão. O que se entende como “agora” está atravessado por decisões tomadas antes, muitas vezes sob silêncio ou apagamento.

Quando você escolhe estudar História, começa a perceber o que sustenta os conflitos atuais. Violência, desigualdade, autoritarismo e racismo não são eventos isolados. São parte de processos históricos que continuam em funcionamento.

Estudar o passado não é uma curiosidade. É um posicionamento. A maneira como a História do Brasil é contada influencia o que se entende como legítimo hoje. Quem define os marcos do passado também interfere no que você considera aceitável no presente. A narrativa histórica não está fora do jogo político. Ela faz parte dele.

Por que estudar História é um ato político?

Quando você escolhe estudar História, não está só abrindo um livro. Está entrando num campo de disputa. Quem controla o que se lembra também organiza o que se repete. Os discursos oficiais, os monumentos, os livros didáticos e os currículos escolares são resultado de escolhas. Alguém decidiu o que mostrar e o que esconder.

A formação histórica ensina a fazer perguntas. A desconfiar do que parece consenso. A observar os silêncios e os atalhos. Por isso incomoda. Porque ajuda a revelar que algumas versões foram mantidas justamente para proteger quem já tem poder.

Num contexto em que negar o passado virou prática comum em discursos políticos, estudar História passa a ter uma função: desmontar versões distorcidas e mostrar que nada do que está aí veio do acaso. A História pode ser usada para justificar ou para alertar. A diferença está em quem conta. E por que escolheu contar daquele jeito.

O que a História estuda, de verdade

História não é sobre relembrar datas comemorativas. É sobre entender como as sociedades foram organizadas. Como o poder se acumulou em determinadas mãos. Como ele foi apresentado como legítimo. Como parte da população foi deixada de fora.

Estudar História é observar a formação de estruturas sociais, as disputas por terra, trabalho e reconhecimento. É analisar como certos grupos garantiram seus privilégios e como isso seguiu operando ao longo do tempo. A História não acontece em linha reta. Ela muda, se adapta, mas carrega marcas do que foi mantido e do que foi apagado.

O estudo da História exige olhar para os bastidores do que foi registrado como fato. Não existe versão neutra. Existe escolha, interesse, disputa. O que chega até você é o resultado de decisões sobre o que deveria ser lembrado e o que seria esquecido. Estudar História é investigar essas escolhas.

História do Brasil: uma disputa de memória

A história do Brasil que você aprendeu na escola provavelmente veio com lacunas. Faltaram nomes, contextos, contradições. Isso tem um motivo. A narrativa oficial foi construída para reforçar uma determinada ideia de país. Ela evitou temas incômodos, simplificou processos complexos e tirou o foco de quem foi afetado pelas decisões tomadas.

Revisar essa narrativa não é reescrever o passado. É examinar o que ficou de fora. É entender por que certos eventos são comemorados enquanto outros são ignorados. A independência, a abolição, a proclamação da República ou a redemocratização ganham outro significado quando você observa quem não teve voz nesses processos. E o que foi feito para que essa ausência parecesse natural.

Independência proclamada por quem mantinha escravizados

O processo de independência do Brasil é muitas vezes apresentado como um gesto de ruptura com Portugal. Mas, na prática, foi conduzido por um príncipe europeu, que mantinha escravizados e tinha vínculos diretos com a estrutura colonial. A decisão foi tomada por cima, com base em interesses econômicos de grandes proprietários e comerciantes.

A maior parte da população não teve participação. O modelo político e social seguiu quase o mesmo. O poder continuou nas mãos de quem já mandava: donos de terra, militares e figuras ligadas à Igreja. Para a maioria, pouca coisa mudou.

Analisar esse período de forma crítica ajuda a entender que o projeto de independência foi pensado para manter as hierarquias existentes, e não para romper com elas.

Criado por um artista italiano e criticado por apagar a história do povo, o Monumento da Independência foi alterado às pressas para incluir nomes brasileiros. Mesmo assim, manteve o protagonismo da elite. Um símbolo erguido sem o povo — e contra a memória popular. Foto: Alesp

Abolição que deixou milhões à margem sem qualquer reparação

A abolição da escravidão, em 1888, é muitas vezes apresentada como um ato generoso da monarquia. Mas o fim formal da escravidão não veio acompanhado de qualquer política de reparação. Nenhuma medida foi adotada para garantir moradia, renda, acesso à terra ou educação aos libertos. O Estado os deixou à margem.

Milhões de pessoas passaram da condição de propriedade para a de mão de obra descartável. Sem direitos, sem reconhecimento, sem apoio. Isso não foi descuido. Foi escolha. A elite continuou controlando os meios de produção, e o racismo seguiu sendo ferramenta de exclusão. A desigualdade racial que existe hoje tem raízes nesse momento.

Não é um problema novo nem um erro de percurso. É consequência de uma estrutura montada para manter privilégios.

República implantada sem consulta popular

A República brasileira foi proclamada por militares em 1889, sem participação da população. Não houve debate público, nem qualquer processo de escuta. O império foi substituído por uma nova forma de governo, mas os grupos no poder continuaram os mesmos.

O discurso da modernização escondeu a permanência de práticas excludentes. O voto era restrito. As oligarquias dominaram a política. O novo regime não ampliou direitos — apenas reorganizou o controle. A lógica da escravidão foi reciclada sob outra linguagem: clientelismo, coronelismo, controle regional. A República não nasceu democrática. E isso ajuda a entender muitos dos problemas institucionais que ainda persistem.

Ditadura militar tratada como “revolução” por décadas

golpe de 1964 foi, por muito tempo, tratado como “revolução”. Essa escolha de palavra não foi neutra. Foi parte de um esforço de legitimar a repressão. A ditadura impôs censura, perseguições, torturas e assassinatos. Mesmo assim, durante anos, o regime foi defendido em escolas, jornais e documentos oficiais como se tivesse “salvado o país”.

ditadura foi a continuação de uma tradição de fechamento político e repressão a qualquer tentativa de organização popular. Para entender o período, não basta listar presidentes militares. É preciso olhar para a estrutura do Estado, para a atuação das polícias, para o papel das empresas e para o apoio externo. Essa memória ainda é disputada. E os efeitos do regime continuam presentes nas instituições.

Redemocratização sem responsabilização dos torturadores

A transição política nos anos 1980 trouxe eleições e uma nova Constituição, mas não enfrentou os crimes cometidos durante a ditadura. A Lei da Anistia, aprovada ainda em 1979, impediu qualquer responsabilização dos agentes do regime. Torturadores, mandantes e beneficiários seguiram impunes. Nenhum julgamento. Nenhuma reparação completa. Nenhuma mudança estrutural nas forças de segurança.

Esse silêncio teve efeitos duradouros. O autoritarismo permaneceu presente nas práticas policiais, no sistema de justiça e na forma como o Estado lida com protestos, periferias e populações racializadas. A violência institucional não foi interrompida. Apenas mudou de nome e cenário.

Chamar esse processo de “redemocratização” sem qualificar o que ficou de fora ajuda a entender por que a democracia brasileira ainda convive com tantas limitações. As bases do autoritarismo não foram desmontadas. Foram preservadas sob a promessa de estabilidade.

Por que estudar História incomoda tanto?

Estudar História incomoda porque muda a forma como você enxerga o que está à sua volta. Tira os fatos da zona de conforto. Aponta que muita coisa ensinada como verdade foi, na prática, escolha. Alguém decidiu o que seria contado e o que seria deixado de lado. Estudar História é lidar com essas decisões.

Porque você aprende a desconfiar

A formação histórica te ensina a fazer perguntas. A não aceitar versões prontas. A buscar fontes, comparar discursos, analisar os contextos. Isso atrapalha quem está acostumado a impor uma narrativa única.

A História mostra que nenhuma versão é neutra. Que toda explicação serve a algum interesse. Por isso, quem estuda costuma ser visto como alguém que “complica”. Mas o que está fazendo, na verdade, é recusar explicações fáceis.

Porque você entende quem você é

Estudar História ajuda a localizar seu lugar nas estruturas sociais. Entender como a classe a que você pertence foi construída. De onde vêm as desigualdades que te atingem. Qual foi o papel do Estado nisso tudo. Quando você reconhece essas dinâmicas, começa a perceber que o problema não está só em escolhas individuais.

A formação histórica também aproxima você de outras experiências. De lutas antigas que seguem atuais. De processos de resistência que continuam, mesmo quando não aparecem nos livros. Isso amplia seu repertório e te conecta com outras formas de ação.

Movimentos estudantis pedindo a revogação do Novo Ensino Médio em manifestação na Avenida Paulista, São Paulo, em 2023. | Foto: reprodução de Nova Democracia

Formar-se em História é intervir no mundo

O campo da História não se limita à sala de aula. Quem se forma nessa área pode atuar em arquivos, museus, projetos culturais, produções audiovisuais, assessorias parlamentares, organizações sociais e coletivos de memória. A função é sempre a mesma: lidar com o que é contado, com o que foi esquecido, com o que precisa ser documentado.

O trabalho de quem estuda História é ajudar a construir referências. Isso vale tanto para o ensino quanto para a produção de conteúdo, o jornalismo, a curadoria de exposições ou a participação em políticas públicas. Onde há disputa de narrativa, existe espaço para atuação.

Conhecimento como prática de combate

  • Investigar documentos pouco acessados e propor novas leituras
  • Dar visibilidade a trajetórias de mulheres, pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+
  • Atuar em comissões da verdade ou processos de justiça de transição
  • Apoiar a formação política em sindicatos e movimentos sociais
  • Participar de espaços educativos informais, como coletivos e ocupações
  • Organizar mapeamentos de memória em territórios urbanos e rurais
  • Criar exposições, acervos digitais e livros com base em fontes primárias

A atuação em História não precisa de palco. Ela acontece nos bastidores, nos arquivos, nos bairros, nas salas de aula, nos grupos de estudo, nos projetos locais. É ali que se cria vínculo com o território, com a memória e com as disputas atuais.

O papel da História diante do negacionismo

Negar o golpe de 1964, negar o racismo estrutural, negar a escravidão, negar o extermínio indígena ou a violência de Estado não são erros isolados. São escolhas. Estratégias de grupos que querem manter controle sobre o passado — e, por consequência, sobre o presente.

Esses discursos ganham força quando não há contraponto. É por isso que a formação histórica tem um papel importante. Ela ajuda a reconhecer padrões, identificar repetições e desmontar versões fabricadas. Quem estudou os regimes autoritários do século XX, por exemplo, consegue perceber quando o discurso político começa a repetir os mesmos métodos.

negacionismo não surge de uma hora para outra. Ele se organiza em torno de interesses, se apoia em narrativas simplificadas, ocupa espaços institucionais e tenta substituir pesquisa por opinião. Quem estuda História pode não impedir isso sozinho, mas ajuda a travar esse tipo de disputa com argumentos, dados e contexto.

A História não serve apenas para preservar. Ela também expõe. E, às vezes, incomoda. Justamente por mostrar que quase tudo o que se apresenta como inevitável foi, em algum momento, uma decisão política. Estudar História é uma forma de lembrar disso.

O saber histórico não é neutro

Toda decisão metodológica tem impacto político. A pergunta que você escolhe fazer, a fonte que decide usar, o que entra no recorte e o que fica de fora — tudo isso define o tipo de história que será contada. A ideia de neutralidade muitas vezes serve para reforçar o que já está estabelecido. Assumir uma posição não desqualifica o trabalho. Deixa claro de onde se fala e com que intenção.

O que você pode fazer com esse conhecimento?

Com esse conhecimento, você pode criar conteúdo educativo em redes sociais, roteirizar documentários e podcasts sobre temas históricos, produzir materiais didáticos com outras abordagens, construir acervos comunitários em territórios periféricos, apoiar movimentos de memória e reparação, mapear violações de direitos e recuperar trajetórias de luta.

Também pode atuar em projetos de educação popular, escrever artigos que conectem o passado ao presente, desenvolver metodologias de ensino crítico em escolas públicas e organizar laboratórios de história oral com idosos e lideranças locais.

A História precisa sair do lugar do saber fechado. Circular em diferentes espaços. Funcionar como ferramenta útil para quem enfrenta as contradições do cotidiano. A formação histórica ganha sentido quando se conecta com as lutas concretas, com as desigualdades persistentes e com os debates que ainda estão em aberto.

Conclusão

Você vive num país que apaga. Um país que chama ataque de pacificação. Que transforma ditadores em patriotas. Que ensina o 13 de maio e silencia o 20 de novembro. Que homenageia torturadores com nomes de ruas. Estudar História é recusar esse projeto. É disputar o sentido das palavras. É recontar o que foi distorcido. E, mais do que isso, é fortalecer quem luta por justiça. Por reparação. Por memória.

A formação histórica te oferece ferramentas para enxergar o que está por trás dos discursos. Para entender a função social da mentira. Para reconhecer padrões de dominação. Para construir outros caminhos.

Estudar História é, hoje, um ato de coragem. Porque é um ato de posicionamento. E quem se posiciona, incomoda. Mas também move. Desloca. Faz pensar. E talvez, aos poucos, transforme.

 

*Leila Cangussu, da equipe ICL Notícias, é aluna da pós-graduação Repensando o Brasil: Sociedade, política e história, uma formação oferecida pelo ICL em parceria com a FESPSP. A segunda turma começa em 15 de maio de 2025. As inscrições estão abertas. Se você quer estudar História com foco crítico e compromisso com a realidade brasileira, não perca essa oportunidade!

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