Você já percebeu como o bolsonarismo usou a fé para ampliar seu poder político? A relação entre Jair Bolsonaro e parte expressiva das igrejas evangélicas no Brasil não começou por acaso. Ela foi construída com estratégia, interesses e promessas.
O que parecia ser apenas uma aliança eleitoral virou um projeto teológico e político de longo prazo. Nesse cenário, líderes religiosos passaram a atuar como cabos eleitorais, donos de partidos, articuladores parlamentares e, em muitos casos, empresários da fé.
A formação da bancada da Bíblia
A ocupação dos espaços de poder por figuras religiosas não é nova. A diferença, no caso do bolsonarismo, é a centralidade que os pastores midiáticos assumiram no comando do projeto. Eles não só apoiaram a candidatura de Bolsonaro em 2018 e 2022 — como também direcionaram parte do seu discurso.
A promessa de defender a “família cristã” serviu de isca. O dízimo virou capital político. Os cultos, comícios.
Entre os mais ativos estavam:
- Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo
- José Wellington Bezerra da Costa, do Ministério do Belém
- Samuel Câmara, da Assembleia de Deus em Belém (PA)
- Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus
- R.R. Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus
- Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus
- Estevam Hernandes, da Renascer em Cristo
- Bispo Rodovalho, da Sara Nossa Terra
Esses nomes controlam redes de televisão, rádio, editoras e canais no YouTube. Alguns têm representação direta no Congresso com familiares eleitos. Outros influenciam bancadas inteiras. A maioria atuou para transformar o bolsonarismo em doutrina e Bolsonaro em figura ungida.
O bolsonarismo como religião paralela
A ideia de Bolsonaro como um enviado divino se espalhou. As redes sociais impulsionaram vídeos com supostas profecias, revelações e chamados à intervenção militar. Pastores passaram a falar do ex-presidente como se fosse um novo Davi.
O bolsonarismo virou um tipo de fé: quem questionava, era tratado como pecador. Não havia mais debate político. Havia guerra espiritual.
A mistura entre religião e bolsonarismo criou uma igreja paralela. Ela exorciza o “espírito de Paulo Freire”, despreza a Constituição de 1988 e celebra a autoridade de militares, pastores e empresários. A Bíblia deu lugar a banners com fotos de torturadores, gurus da internet e candidatos da extrema direita.
Teologia do domínio: a estratégia por trás da cruz
Esse movimento não é só brasileiro. Ele tem nome e método: teologia do domínio. É uma corrente fundamentalista que defende que cristãos devem governar todas as esferas da vida — política, justiça, economia, cultura. Michelle Bolsonaro disse isso com todas as letras: “Fomos negligentes, deixamos o mal ocupar o espaço”.
O que ela chama de “mal” é qualquer pensamento diferente da visão que ela defende. A consequência disso é clara: se quem pensa diferente é mau, então não há mais adversários. Há inimigos. A democracia vira obstáculo. A negociação vira pecado. A política vira guerra santa.
Silas Malafaia: pastor, empresário e general do bolsonarismo
Entre os líderes religiosos que abraçaram esse projeto, Silas Malafaia talvez seja o mais barulhento. Ele é presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, comanda programas de TV, influencia parlamentares e tem linha direta com Bolsonaro. Ele ajudou a articular o comando da Frente Parlamentar Evangélica, agindo para impedir que o grupo se aproximasse de Lula.
Malafaia também é um dos principais defensores da anistia aos golpistas de 8 de janeiro. Nos seus cultos, diz que o apoio a Bolsonaro é feito em nome de Jesus. Em entrevistas, critica o ex-presidente quando convém, mas não deixa de agir como seu aliado. Em São Paulo e no Paraná, chamou Bolsonaro de covarde por não se posicionar firmemente nas eleições municipais.
Mas isso não foi um rompimento. Foi cobrança. Pastor e político têm uma relação de troca. Um ajuda a manter o outro em cena.
Assembleia de Deus Vitória em Cristo e o projeto político
A igreja liderada por Malafaia funciona como base de apoio direto ao bolsonarismo. A conexão com Sóstenes Cavalcante, deputado federal e líder do PL na Câmara, garante presença no Congresso. A igreja não só apoia projetos como também interfere nas decisões políticas do país, seja para garantir isenção de impostos, seja para pressionar por leis que favoreçam seus interesses.
O púlpito é usado para defender anistia aos golpistas, atacar o STF, deslegitimar eleições. As mensagens são transmitidas em nome da fé. O dízimo financia a campanha. O rebanho vira eleitor.
Publicação do pastor Silas Malafaia mostra os bastidores da marcha bolsonarista do dia 7 de setembro de 2021
A estrutura do bolsonarismo religioso
O bolsonarismo dentro das igrejas evangélicas não funciona no improviso. Existe uma lógica de funcionamento que combina fé, mercado e poder. Você pode observar isso em cinco frentes principais:
- Controle territorial: os templos estão presentes onde o Estado quase não chega. Favelas, bairros periféricos, cidades pequenas. O pastor assume o papel de conselheiro, juiz, psicólogo e autoridade local. A igreja substitui o serviço público. É ali que se formam lealdades duradouras.
- Mídia própria: os principais líderes bolsonaristas são donos de canais de TV aberta, rádios comunitárias, jornais impressos e redes sociais com milhões de seguidores. A mensagem circula em ciclos fechados: quem está dentro só ouve quem pensa igual.
- Empresas paralelas: a fé virou negócio. Gravadoras, editoras, escolas, selos de certificação teológica, agências de turismo religioso e até serviços de coaching cristão compõem o ecossistema. Cada braço alimenta o outro. O dinheiro que entra na igreja não volta pra base. Gira entre os mesmos.
- Representação política: filhos de pastores viram deputados. Líderes locais viram vereadores. E as candidaturas são lançadas no púlpito, como missão divina. O voto é apresentado como obediência espiritual. E a eleição, como cumprimento de propósito.
- Influência legislativa: a bancada evangélica no Congresso atua em blocos. Em votações importantes, fecha questão. Pressiona o governo. Negocia cargos. Troca apoio por benefícios institucionais, como emendas, isenções e nomeações.
Essa estrutura garante estabilidade ao projeto. E permite que o bolsonarismo religioso funcione mesmo fora do governo. Enquanto houver púlpito, haverá base. Enquanto houver base, haverá força eleitoral. O discurso fala em salvação. Mas o mecanismo é de dominação. E ele não depende de fé para funcionar.
A fé como escudo para o discurso de ódio
Muitos pastores bolsonaristas fazem dos seus microfones instrumentos de ataque. Criticam direitos humanos, defendem torturadores, atacam o STF, espalham desinformação. Dizem que falam em nome de Jesus, mas o conteúdo lembra mais um panfleto de campanha do que uma pregação religiosa.
Para João Cezar de Castro Rocha, a eleição virou apenas mais um episódio da guerra cultural transformada em modo de vida. Se Bolsonaro perde, o problema não é político. É espiritual. Quem não aceita, vira traidor. Quem pensa diferente, deve ser eliminado.
O 8 de janeiro não surgiu do nada
Os ataques aos Três Poderes em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, não foram um surto isolado. Eles foram preparados por meses.
Nos cultos, nas lives, nas mensagens de WhatsApp, os fiéis foram sendo levados a acreditar que Bolsonaro era o último obstáculo contra o mal. Oraram na frente dos quartéis. Levaram a Bíblia para justificar atos violentos. Alguns rezaram para pneus. Outros declararam: “Bolsonaro é o meu pastor e nada me faltará”.
A violência foi sendo normalizada. A mentira virou verdade. A fé virou escudo.
Atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 (Foto: Joédson Alves/Agencia Brasil)
Reações internas
Nem todo mundo ficou calado. Pastores como Aquias Santarém criticaram publicamente a transformação da igreja em comitê político. Ele apontou o que muita gente já sentia: que o cristianismo pregado por esses líderes não tem nada a ver com Jesus. É um cristianismo de poder, de dinheiro, de vaidade. Onde só os filhos dos pastores viram deputados. Onde o pobre serve para votar e ofertar.
Outras lideranças começaram a denunciar o uso da igreja como negócio. Mostraram como pastores viraram empresários que abrem templos como quem monta franquias e faz da fé um produto.
Nacionalismo cristão: o próximo passo
Michelle Bolsonaro deixou claro que o projeto continua. A aposta agora é no nacionalismo cristão. Um discurso que mistura Bíblia, militarismo e política. Ela disse que a separação entre política e religião foi um erro. E que agora é hora de “retomar o espaço que o mal ocupou”.
Na prática, isso significa ampliar o domínio evangélico nas escolas, nos conselhos tutelares, nas câmaras municipais e no Congresso. Já há mobilização para as eleições de 2026. O objetivo é restaurar Bolsonaro ou alguém do seu círculo — como Michelle — como opção eleitoral com apoio maciço das igrejas.
E onde fica o Estado laico?
A pergunta que você precisa fazer é: onde entra o Estado nisso tudo? Quando pastores tentam convencer outras pessoas a apoiarem uma determinada ideologia, partido político ou candidato nos cultos, recebem isenção fiscal e, ainda assim, operam como partidos — o que sobra de separação entre Igreja e Estado?
O risco é claro: a fé virou instrumento de poder. E esse poder atua contra a democracia.
O que você pode fazer?
- Questione o uso político da sua fé
- Converse com pessoas próximas que foram capturadas pelo discurso religioso bolsonarista
Estude sobre teologia do domínio e nacionalismo cristão - Apoie movimentos religiosos que defendem a democracia e os direitos humanos
- Exija do Estado o cumprimento da laicidade
Não se trata só de religião
O bolsonarismo evangélico é mais do que uma aliança eleitoral. É um projeto de poder com base teológica, estrutura de comunicação, apoio popular e objetivos políticos claros. Ele não pretende apenas influenciar. Ele quer governar.
Você não precisa ser evangélico para entender o que está em jogo. Quando a fé é usada para justificar violência, mentiras, golpes e retrocessos, todo mundo é afetado. É disso que se trata. O que está em disputa é o futuro da democracia.