Por Leila Cangussu
Para entender o Brasil, você precisa encarar um ponto que raramente aparece nos livros didáticos ou nos telejornais: a elite brasileira tem desprezo pelo povo brasileiro.
Esse sentimento não é novo nem espontâneo. Ele foi construído historicamente, mantido por gerações e atualizado conforme o cenário político e econômico muda. Desde o início, o país foi organizado para servir a poucos. O restante ficou de fora — e continua assim.
A base desse modelo está em quase tudo: na forma como o Estado funciona, no sistema de justiça, no jeito como a mídia retrata o povo, nos discursos sobre progresso, educação e trabalho. Tudo parece feito para naturalizar a desigualdade e afastar você da ideia de que isso pode mudar.
Neste artigo, você vai entender de onde vem esse ódio, como ele se transforma com o tempo e por que ainda forma a sua vida, mesmo que você não perceba.
A origem do ódio da elite brasileira
A elite brasileira se formou com base na escravidão. Foram séculos tratando pessoas como objetos. O projeto de país não incluía cidadania, igualdade ou participação popular. A meta era garantir mão de obra barata e obediente.
Mesmo depois do fim da escravidão formal, o modelo seguiu com outras formas de exclusão: moradia precária, falta de acesso à saúde, prisões lotadas, violência seletiva. A estrutura continuou a mesma. O que mudou foi a aparência.
A mesma elite que comandava os engenhos passou a controlar partidos, jornais, universidades e grandes empresas. E com isso construiu uma narrativa para justificar sua posição: o povo seria atrasado, desonesto, preguiçoso, incapaz de decidir por si. Esse discurso ainda circula com força.
O recado é claro: você não merece direitos. Só existe para servir.
O racismo reconfigurado
Quando ficou socialmente inaceitável dizer que alguém vale menos por causa da cor da pele, a elite encontrou outras formas de manter a exclusão. O foco passou do biológico para o cultural.
Surgem então expressões como “jeitinho brasileiro”, “cordialidade”, “malandragem”, que reforçam a ideia de que o problema está no comportamento do povo, e não nas estruturas que o mantêm em desvantagem.
Esse tipo de racismo — que Jessé Souza chama de racismo cultural — cumpre o mesmo papel que o anterior: afastar os mais pobres dos espaços de decisão e reforçar a desigualdade como se fosse algo natural.
Quando você é ensinado a acreditar que o problema do Brasil é o próprio povo, você para de olhar para os verdadeiros responsáveis. Passa a culpar a si mesmo ou os seus vizinhos, e não quem lucra com a sua condição.
Esse é o funcionamento cotidiano do ódio de classe no Brasil. Ele não aparece em frases diretas. Mas está nas entrelinhas de quase tudo o que você vê, escuta ou consome.
A construção ideológica do desprezo
Você não nasce achando que o povo é preguiçoso, desonesto ou incapaz. Alguém te ensinou isso. E quem ensinou tinha um objetivo claro: manter distância entre quem tem poder e quem não tem.
Esse desprezo não é instintivo. Foi construído. Com método, com dinheiro, com planejamento.
Ao longo do tempo, a elite financiou uma narrativa sobre o Brasil. Essa narrativa se espalhou por escolas, universidades, jornais, novelas, campanhas publicitárias e discursos políticos.
Nessa história, o povo virou o problema. A desigualdade passou a ser vista como consequência do comportamento dos pobres, e não das estruturas que os mantêm em desvantagem.
Quando você repete que o país não vai pra frente por causa da “falta de educação” ou do “jeitinho brasileiro”, você reforça essa ideia. E deixa de olhar para quem realmente se beneficia do sistema como ele é.
O papel da sociologia oficial
Durante décadas, autores como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro ajudaram a construir uma visão dominante sobre o Brasil. Essas leituras ainda circulam como explicações neutras, mas precisam ser questionadas.
Gilberto Freyre falou de uma escravidão “branda”, como se relações violentas fossem vínculos afetivos. Sérgio Buarque criou o “homem cordial”, atribuindo ao povo a tendência de misturar o público com o privado. Raymundo Faoro reforçou a ideia de que a corrupção brasileira vem do Estado, por herança portuguesa.
Essas teses mudam o foco da crítica. Em vez de olhar para as relações de exploração, olham para o comportamento cultural, como se o problema estivesse no jeito de ser do brasileiro — e não na estrutura econômica.
Enquanto isso, o mercado — onde se concentram os maiores privilégios — segue intocado. É ali que estão os grandes grupos que influenciam decisões públicas, que acumulam riqueza sem produzir e que moldam a política sem se eleger.
A função da classe média
A classe média brasileira não é elite, mas tenta se afastar o tempo todo do povo. Essa busca por distinção virou um papel político.
Na prática, a classe média ajuda a manter o sistema funcionando:
- Gerencia empresas e repartições públicas em nome da elite
- Reforça o discurso da meritocracia para justificar desigualdades
- Reage contra políticas públicas populares, mas tolera os privilégios de cima
Essa postura não surgiu do nada. Foi construída por meio da escola, da imprensa, das redes sociais, das referências culturais.
A classe média se vê como quem “venceu na vida” pelo esforço individual, mesmo quando usufrui de heranças invisíveis, como estabilidade familiar, acesso à educação, proteção da polícia e tempo livre para estudar.
Com isso, legitima a repressão, normaliza a desigualdade e colabora com uma política que concentra poder em vez de redistribuí-lo.
A classe média brasileira, mesmo fora da elite, adota um papel político ativo ao gerenciar estruturas públicas, reforçar discursos de meritocracia e normalizar a desigualdade como forma de se distinguir do povo. Foto: Agência Brasil
O mito da corrupção estatal
Você cresceu ouvindo que o problema do Brasil é a corrupção dos políticos. Essa ideia foi repetida até virar senso comum. Mas não apareceu do nada. Ela cumpre um papel específico: tirar o foco do que acontece no mercado.
Enquanto todo mundo aponta para o Congresso, as engrenagens da economia funcionam sem barulho. É ali que operam os juros abusivos que sustentam os lucros bilionários dos bancos. É ali que se garantem as isenções fiscais para grandes fortunas. É ali que as privatizações seguem transferindo ativos públicos para grupos privados.
O Estado vira ferramenta da elite financeira. E o orçamento que deveria garantir serviços públicos vira fonte de lucro. O resultado está nas escolas precárias, nos hospitais lotados, nas obras inacabadas. E quem paga é você.
A corrupção existe. Mas a que mais pesa na sua vida é a legalizada. E ela não está só na política. Está no sistema.
A manipulação da narrativa
O discurso contra a corrupção é construído de forma seletiva. Ele serve para deslegitimar lideranças populares e proteger os interesses da elite. Não é coincidência. É estratégia.
A operação Lava Jato é um exemplo disso. Foi apresentada como cruzada ética, mas atingiu principalmente políticos ligados a políticas sociais. Alimentou o antipetismo, desestabilizou instituições e abriu caminho para um governo alinhado ao mercado. Tudo isso com apoio da mídia, do Judiciário e de parte da classe média.
Enquanto isso, empresários que movimentam bilhões ficam fora do noticiário. A corrupção virou cortina de fumaça. O que está em disputa é quem controla o Estado. Quem define para onde vai o dinheiro. E sempre que o povo começa a disputar esse espaço, a reação é imediata: denúncia, operação policial, escândalo sem fim.
O impacto na identidade nacional
Desde cedo, você escuta que o brasileiro é corrupto, desorganizado, preguiçoso. Que tem “jeitinho”, que não sabe votar, que não sabe se comportar. Essa ideia foi repetida até se tornar parte da sua autoimagem.
Ela não surgiu por acaso. Foi construída para justificar por que a maioria vive com pouco. E para fazer você duvidar da sua própria classe.
Depois de 1930, setores da elite paulista ajudaram a construir essa imagem. O povo virou alvo de piada, de desconfiança, de culpa. Em vez de olhar para os mecanismos que produzem a desigualdade, a sociedade passou a culpar quem vive nela.
Essa visão também reconfigura o racismo. A discriminação deixa de ser assumida como tal e passa a ser tratada como “problema cultural”. É a ideia de que o pobre é desorganizado por natureza, que a periferia é violenta porque quer ser, que o negro precisa “melhorar” para ser aceito. O nome disso é racismo cultural.
Você começa a se ver como problema. Acredita que tudo depende apenas de esforço individual, mesmo quando a estrutura não oferece chance real de mobilidade.
O que está em jogo?
A disputa no Brasil gira em torno de uma pergunta: quem vai decidir para onde vai o dinheiro público?
Quando se fala em orçamento, não se trata de algo abstrato. É ele que define se o posto de saúde vai ter atendimento ou se você vai passar o dia na fila. Se o transporte melhora ou piora. Se a escola funciona ou sobrevive como dá.
A elite sabe disso. E trabalha para manter esse orçamento sob seu controle. O discurso anticorrupção é uma das ferramentas. Ele afasta o povo da política e mantém a decisão nas mãos de quem já tem tudo.
Quando alguém tenta mexer nessa estrutura, a reação é sempre parecida: denuncismo, mídia em campanha, ataques ao STF, operação policial. Foi assim com Getúlio. Foi assim com Dilma. Foi assim com Lula.
Não é coincidência. É proteção de patrimônio. E o que está em jogo não é ética: é poder.
Por que você precisa entender isso agora?
Você vive em um dos países com mais água doce, biodiversidade, solo fértil e energia do mundo. O Brasil não é pobre. Foi empobrecido ao longo dos séculos por escolhas que favorecem sempre os mesmos grupos.
Essa desigualdade não é acidente. É parte de um projeto. Um modelo de país organizado para proteger quem já tem muito e manter a maioria sem acesso aos recursos mais básicos.
Não é por acaso que você precisa trabalhar a semana inteira para pagar o básico. Não é por acaso que os serviços públicos vivem em crise. Isso é reflexo de um Estado que funciona cada vez mais a serviço do mercado, dos bancos e das grandes fortunas. Enquanto você se culpa, acreditando que “o problema do Brasil é o brasileiro”, os donos do poder continuam onde sempre estiveram.
Quem controla a riqueza não quer divisão. Quer estabilidade para manter o que tem. E isso inclui criminalizar qualquer tentativa de distribuição ou regulação. É o que Jessé Souza chama de “elite do saque”: além de acumular, ela precisa te convencer de que essa ordem faz sentido.
Boa Viagem, no Recife, expõe um contraste explícito entre riqueza e exclusão — um retrato urbano da desigualdade estruturada que naturaliza a concentração de renda e reforça o mito de que pobreza é falha individual. Foto: Diego Herculano/NurPhoto via Getty Images
Esclarecimento e consciência de classe
Se você quer entender o país onde vive, o primeiro passo é parar de aceitar que a culpa é sua.
Você não fracassou por preguiça. Não ficou para trás por falta de talento. Não tem menos porque tentou menos. Esse tipo de discurso é útil para quem quer te manter isolado e em silêncio.
Você faz parte de uma classe. Uma classe que vive do próprio trabalho. E essa classe está em conflito com outra, que vive da herança, dos juros e das regras que ela mesma criou para manter a desigualdade.
Consciência de classe não é discurso antigo. É uma ferramenta para entender por que poucos decidem e muitos obedecem.
Organização e educação política
Não adianta esperar que as coisas mudem sozinhas. Só a organização muda as regras do jogo. E para se organizar, é preciso entender como ele funciona.
Educação política não é um extra. É um recurso básico para não cair nas mesmas armadilhas. Para não repetir discursos que foram feitos para proteger os de cima.
Você precisa estudar a história do Brasil a partir das disputas de poder. Compreender como a desigualdade é mantida por estruturas como o sistema tributário, a concentração do crédito, a seletividade da justiça e o papel da mídia na formação da opinião pública.
Quando um político popular é derrubado, quando um movimento social vira caso de polícia, quando só uma versão da história aparece no noticiário — há um projeto por trás disso.
A elite precisa que você esteja desinformado. Precisa que você não confie em ninguém, que não discuta política, que acredite que está sozinho. Porque quando você estuda, debate e se organiza com outras pessoas, a estrutura começa a balançar.
Conclusão
A elite brasileira não te odeia por algo que você fez. Ela odeia o que você representa: a lembrança de que há algo profundamente errado em um país tão desigual. Entender isso não resolve tudo, mas muda o ponto de partida.